quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Educacao Domiciliar e a arte de viver em sociedade

Existem alguns grupos, principalmente aqui nos EUA, que escolhem a educacao domiciliar por razoes religiosas. Eles temem que seus filhos serao expostos a "cultura liberal" que irah "poluir as mentes dos pequenos". Para eles, a escolha da educacao domiciliar eh uma de exclusao. Excluindo certas influencias do convivio dos filhos e criando-os com uma visao miope do mundo. Como esses grupos sao, normalmente, mais "barulhentos", qualquer pessoa que se assuma praticante da educacao domiciliar eh automaticamente associada a esses grupos radicais e pouco racionais. Esse eh apenas um dos muitos mitos que se ouve por aih sobre educacao domiciliar.

Mitos definem-se como nao-verdades ditas sobre algum tema e que sao tidas como verdades por um grupo de pessoas ou por grande parcela da sociedade. Existem mitos que sao inofensivos como aquelas historias que nossas avos (ou bisavos) contavam sobre comer melancia com uva e ficar com pedras no estomago. Existem tambem os mitos que se perpetuam e moldam toda uma sociedade. Esses normalmente nao sao questionados, mas sim assumidos como verdade absoluta. No que tange a educacao domiciliar, um dos mitos mais conhecidos eh a perda de socializacao.

Quando ainda consideravamos a educacao domiciliar, fomos duramente criticados por estar cogitando "tirar o Kiyo do convivio social de outras criancas". Estariamos criando nosso filho em uma redoma, na tentativa "frustrada" (segundo eles) de protege-lo contra o mal do mundo. Segundo eles tambem, seria cruel e egoista de nossa parte fazer isso com o Kiyo. Afinal, como seria se algum dia faltassemos para ele? Como eh que ele seria capaz de lidar com o mundo se nao fora preparado "desde a tenra idade"?

Aih eh que estah. Existe uma ideia (muito errada, por sinal) de que uma crianca soh aprende a viver em sociedade uma vez que eh matriculada na escola. Antes disso (conforme o mito da socializacao escolar), a crianca eh isolada do mundo e vive confinada ao lar e a familia. Mas espera aih? E a familia eh o que senao uma versao mini da sociedade? E o convivio que a crianca desde o nascimento tem com todos os membros da familia eh em realidade o primeiro e mais importante vinculo social que ela poderia ter. Eh com a familia que a crianca aprende o que eh apropriado e o que nao eh. Eh com a familia que se aprende (ou nao) a compartilhar. Na verdade, se a crianca nao for socializada para a escola, aih sim ela terah serios problemas. A socializacao, assim como o aprendizado, nao acontecem apenas quando se vai para a escola.

"Mas e o convivio com outras criancas da mesma idade?". "E como fica o convivio com pessoas fora do cuidado e supervisao dos pais?". Parei de contar as vezes em que fui questionada sobre isso.

A realidade eh que antes de ir para a escola, Kiyo era bem social. Ele tinha facilidade em fazer novos amigos e nao tinha problemas em se comunicar com pessoas de todas as idades. Nao tinha "pre-conceitos" sobre brinquedos ou brincadeiras para "meninos ou meninas" e conseguia conversar com adultos e criancas da mesma forma. Depois da escola, passamos a perceber certos comportamentos copiados de coleguinhas. Foi aih que ele passou a selecionar com quem brincava e quais brinquedos eram "para meninos". Foi aih que declarou nao gostar da cor rosa por ser "cor de menina". Foi ficando cada vez mais "envergonhado", e deixou de interagir com as pessoas da mesma forma espontanea que fazia. Passamos a ter que encoraja-lo a cumprimentar pessoas e a responder quando perguntavam algo. Ao contrario do que se imagina, depois que ele foi a escola, Kiyo se tornou menos sociavel e mais seletivo - menos amigavel e mais "clickish" - menos Kiyo e mais padronizado ao sistema.

A "socializacao escolar" eh tambem um mito que precisa ser derrubado, pois coloca um verniz de coisa boa em algo que em geral nao eh saudavel.

Abre parentheses aqui: (Logico que existem escolas que quebram esse molde e que buscam um convivio harmonico e sem rotulos. Existem escolas que sao fora dos padroes e que ensinam de verdade aquilo que vai transformar a crianca em ser pensador e analisador. No entanto, essas sao poucas e estao bem longe do alcance da maioria. Ou sao consideradas "luxo" ou sao vistas como "muito fora da casinha". Nao atendem a massa). Fecha parentheses.

O caso nao eh nem que todo tipo de socializao feita na escola seja ruim. O problema eh acreditar que seja a unica forma de se socializar criancas e nao questionar o tipo de "socializacao" que as escolas oferecem. Afinal de contas, o que eh socializacao? Como se define um ser socializado?

Como seres humanos, somos seres sociais. Ou seja, dependemos do convivio em grupos, comunidades e sociedade para que possamos viver de forma plena. Esta necessidade estah no nosso DNA, assim como para as abelhas, formigas, outros primatas e seres tidos como sociais. Sociais, pelo prisma biologico, jah somos. Precisariamos aprender a sermos algo que jah estah determinado pela nossa genetica? Nao. No entanto, podemos sim melhorar ou piorar a qualidade do convivio. Podemos buscar relacoes que sejam saudaveis ou relacoes que sejam patologicas. Casos de bullying nao sao casos de "falta de socializacao", mas sim de uma forma doente de interagir com o outro. Nao eh necessariamente a falta de socializacao, mas sim a falta de bons exemplos de sociais.

E a escola, o que tem a ver com exemplos sociais? Criancas entram nas escolas pela manha. Vem ainda meio dormindo, sendo apuradas pelos pais e professors para que nao se atrasem. Ao chegar na escola (que seria o centro social, dentro do raciocinio "escola socializa"), as criancas nao sao permitidas conversarem com os colegas. Sao ensinadas que pedir ajuda na hora da prova eh pedir cola e isso eh errado. Sao ensinadas a "trabalharem independentemente" dos outros. Na hora do lanche (almoco aqui nos EUA), as criancas nao podem conversar. Se conversam, sao punidas e obrigadas a comer sozinhas (normalmente viradas para a parede). Na fila para qualquer atividade extra, sao constantemente chamadas a atencao para que fiquem em silencio. Eh um constante: "Fulano, fique quieto" "Fulano, pare de falar" "Nao olhe para o trabalho do colega". Onde estah a tao falada "socializacao"? O aprendizado comunitario eh sufocado pela competitividade nas escolas tradicionais. Criancas aprendem a ser individualistas e (com o perdao da palavra) egoistas. Passam a enxergar o proprio umbigo como o centro do universo. Aprendem que ser o primeiro lugar eh mais importante que ter todos os coleguinhas compartilhando informacao para que todos possam crescer sabendo juntos. Aprendem a ridicularizar e menosprezar os que nao decoraram as continhas na ponta da lingua. Aprendem que o diferente eh esquisito e deve ser ridicularizado, vexado e isolado.

Muito se fala sobre a escola como o meio de se ensinar as criancas a viver no mundo. No entanto, ha pouca semelhanca entre o convivio escolar e a vivencia no mundo fora da escola. Se formos analizar com cuidado, eh na escola que as criancas estao isoladas do mundo. No mundo, no dia-a-dia, se convive com pessoas de todas as idades, credos, racas e orientacoes. No entanto, nas escolas esse tipo de vivencia nao existe ou eh visto apenas nos livros. Nas escolas existem as panelinhas que separam grupos por idade, por raca, por sexo.
Como pais, todos queremos oferecer sempre o melhor aos nossos filhos. E esse tipo de ensinamento nao eh o melhor. A responsabilidade de garantir que o Kiyo esteja capacitado para enfrentar o mundo eh nossa (minha e do Jeff). Ninguem irah assumir o futuro dele. Entao, eh nosso direito de garanti-lo da forma em que nos entendemos ser melhor: oferencendo a ele a oportunidade de interagir verdadeiramente com todos os tipos de pessoas, dando a ele a chance de questionar tudo que lhe vier a cabeca e expandindo seus horizontes para que ele possa ser o melhor naquilo que quiser ser.

Quando decidimos pela educacao domiciliar para nossa familia, sabiamos que seriamos duramente criticados. No inicio de tudo, estavamos sim apreensivos quanto ao sucesso da nossa empreitada. No que diz respeito a vida social do Kiyo, posso dizer que vai muito bem - obrigada! Ele voltou a ser o menino tagarela que interage tranquilamente com criancas menores, criancas maiores, adultos e animais. Ele voltou a ter gosto por todas as cores do arco-iris, apesar de saber quais sao suas favoritas. Ele voltou a ser uma crianca tolerante ao diferente e sem pre-conceitos assumidos sobre o desconhecido. E eh assim que queremos que ele enfrente o mundo: perguntando aos outros e sabendo que eh em grupo que se vive bem.







Nenhum comentário:

Postar um comentário